sexta-feira, outubro 08, 2004

Stark Reality . Now (Stones Throw, Reedição 2003)



Hoagy Carmichael nasceu em 1899, numa pequena cidade do estado de Indiana. Estudou advocacia mas a sua verdadeira paixão era a música, nomeadamente o jazz. Entre as décadas de 30 e 50 compôs alguns dos mais brilhantes standards de jazz - como "Star Dust", "Heart and Soul" ou "Georgia (On My Mind)" - e tornou-se um dos mais importantes songwriters da época. Em 1958, Carmichael gravou "Hoagy Carmichael's Havin' a Party", um disco inocente, com canções para crianças, a banda sonora de um antepassado ingénuo de séries televisivas como a Rua Sésamo ou os Marretas. Uma carreira bem-sucedida como actor em Hollywood e o seu enorme talento para compor melodias inesquecíveis colidiram com os tempos agitados que se viviam na década de 60. Na década da Guerra do Vietnam e de todas as revoluções culturais, a sua música passou de moda e passou a ser considerada anacrónica, uma relíquia distante do passado.

No final da década de 60, Hoagy Bix Carmichael (filho de Hoagy Carmichael) era produtor da WGBH - uma estação de televisão situada na cidade de Boston. Aí conheceu o vibrafonista Monty Stark, autor de bandas sonoras para alguns programas da estação televisiva, estação essa que na época vivia tempos de enorme criatividade. Uma década depois da edição do disco original surge a ideia de um novo programa para crianças e Bix Carmichael convida Stark para actualizar as músicas que o seu pai havia composto 10 anos antes. Juntamente com os Stark Reality - Phil Morrison no baixo, Vinnie Johnson na bateria e o guitarrista John Abercrombie - Stark entra em estúdio para gravar algumas sessões. Na era do free jazz, do funk e do rock psicadélico, é natural que o resultado das gravações venha contagiado pela marca indelével de todos esses estilos. O facto irónico nisto tudo é que foi a mesma cultura subversiva que 10 anos antes havia marginalizado compositores clássicos como Carmichael, a servir de template para actualizar a obra e resgatar o seu autor do esquecimento progressivamente adquirido.

Conta Vinnie Johnson, numa entrevista recente a propósito desta reedição "We played several times at a club in Cambridge and we were only a quartet; all night long there were more people in the band than in the audience. Literally, nobody came to see us. The record was played occasionally on the local stations. These were arrangements that were totally diferent from anything that was around at that time for children' songs." De facto, em retrospectiva 30 anos depois, torna-se bizarro ouvir a declamação do abecedário ou letras sobre quantos dias tem cada mês sob um fundo musical pervertido por funky beats, fuzz guitars, jazzy loops, vibrafones distorcidos e longos jams narcotizados (os músicos afirmam que durante as sessões apenas beberam água e não consumiram qualquer tipo de drogas mas, escutados os resultados finais, custa um pouco a acreditar nessa versão da história).
Um ano após a gravação de "Now" (numa primeira edição baptizado como "The Stark Reality discovers Hoagy Carmichael's Music Shop"), os Stark Reality terminam a sua carreira, sem honra nem glória.

Com o advento do hip hop e o gradual esgotamento das suas fontes mais visíveis de sampling (ok... o repertório de artistas como Isaac Hayes ou James Brown é muito valioso mas não é infinito) os produtores mais inventivos tiveram que vasculhar os fundos de catálogo. Adicionalmente, na tentativa de evitar as regras mais restritivas do copyright impostas no início da década de 90, os produtores tiveram que redescobrir uma época inteira de música esquecida, escavar prateleiras de discos perdidos até conseguirem chegar a grandes breaks escondidos em discos que os executivos (e os respectivos advogados) das majors não conheciam ou de cujos direitos de autor não eram proprietários. Large Professor samplou o primeiro grande break retirado dos Stark Reality, no seu single de 1996, "The Mad Scientist". Rapidamente a música dos Stark Reality converteu-se em açúcar para os ouvidos dos produtores e dos coleccionadores de discos. Main Force, Pete Rock, J Live, Madlib e Cut Chemist são nomes de alguns produtores que samplaram os beats e os interlúdios dos Stark Reality e os reutilizaram nas suas composições. Já este ano, Kenny Dope utilizou um dos seus temas - "All You Need To Make Music" - na compilação "Life:Styles 3". De forma rápida "Hoagy Carmichael's Music Shop" atingiu um estatuto invejável de raridade muito pretendida, com o preço de um exemplar original a atingir os 500 dólares enquanto surgiam rumores de um negócio de troca a envolver um vinil original e um MPC no valor de 1000 dólares. É nesta altura que Eothen "Egon" Alapatt - um digger e coleccionador de breaks de Nashville que colabora com a editora Stones Throw - adquire um exemplar original do álbum com a promessa firme de não o editar. Egon quebrou o compromisso quando Peanut Butter Wolf - fundador da Stones Throw - ouviu, por acaso, o disco no escritório, invocou a sua posição de empregador e não descansou enquanto a reedição não passasse a ser uma realidade concreta.

Depois de obter os respectivos direitos legais à AJP Records (editora de Ahmad Jamal que editou originalmente ""Hoagy Carmichael's Music Shop"), a Stones Throw editou o tema "Rocket Ship" na compilação Jukebox 45's. Em 2003 reeditou finalmente o disco, dando-lhe o nome de "Now". Classificado como o Holy Grail do jazz-funk psicadélico e considerado como o ponto de encontro entre o funk clássico celebrizado por artistas como James Brown ou James McDuff e o funk pedrado, com longos jams inspirados no hard e no psych rock, "Now" foi editado com uma nova sequência, mantendo o material mais importante mas subtraindo alguns interlúdios dispensáveis, ao mesmo tempo que acrescentava três músicas nunca editadas e o histórico tema "Say Brother". Para tornar as coisas ainda mais confusas, a versão do cd é diferente do vinil, sendo aconselhável a aquisição das duas variantes, de forma a completar a colecção. Apesar dos detractores destacarem como atributo mais importante a raridade do objecto e não propriamente a qualidade intrínseca da música, este disco mantém as suas características fundamentais intactas: arranjos pouco convencionais, secção rítmica imparável, breaks impressionantes, experimentação sónica, momentos simultaneamente catchy e tripantes; como uma mistura entre os Led Zeppelin, os The Meters e os Electric Prunes, submetida às improvisações polifónicas da orquestra de Sun Ra. Mas o melhor será mesmo ouvir temas como "Thirty Days Hath September", "Camrades", "Dreams", "Shooting Stars" ou "All You Need To Make Music" e reconhecer uma banda em absoluto estado de graça. Independentemente da questão antropológica e da inevitável importância documental, a música - imensa - vale por si.

Referências:
http://www.stonesthrow.com/starkreality/
Reality Check