sábado, julho 03, 2004

va . Chicago Soul (Souljazz)



'Chicago Soul' é uma compilação representativa da Chess Records, uma das mais eminentes editoras de música negra da cidade de Chicago, durante as décadas de 50 e 60. Chicago era, por esta altura, a cidade norte-americana com maior crescimento demográfico da população negra, ainda consequência do fim da escravatura e da correspondente migração de negros para o norte para servirem de mão-de-obra nas indústrias metalúrgicas e nas minas de zinco. A Chess Records foi fundada por Leonard e Phil Chess, dois irmãos emigrantes polacos, e tem um catálogo impressionante, numa primeira fase, ligado aos blues, r'n'b e gospel e, mais tarde, ao soul, jazz, funk e rock psicadélico. O seu catálogo inclui nomes como os de Howlin' Wolf, Bo Diddley, Etta James, Ramsey Lewis, Dorothy Ashby, The Soul Stirrers, Buddy Guy, Rotary Connection, Muddy Waters e Fontella Bass (todos incluídos neste disco) ou Terry Callier, Max Roach, Yusef Lateef, John Lee Hooker, Chuck Berry, Sugar Pie de Santo e mesmo Marvin Gaye, que com 15 anos, chegou a gravar na Chess através do grupo vocal The Moonglows.
Alguns dos temas contidos nesta colecção são verdadeiramente históricos. É o caso de 'Tell Mama' de Etta James (a primeira artista soul a gravar pela Chess) e 'Leave It In The Hands Of Love' cantada por Fontella Bass. Fontella foi a mulher de Lester Bowie, membro dos fundamentais Art Ensemble de Chicago e foi a voz do clássico 'Theme de YoYo' e surge nesta compilação com um tema deep soul incluído no único disco que gravou na Chess. Outro tema particularmente interessante é 'More and More' de Little Milton Campbell, uma música que juntava a soul ao espírito dos blues. Após o declinio da editora, Little Milton chegou a editar na Stax, nos anos 70.
Três pessoas alteraram de forma radical a sonoridade inicial da Chess e modificaram de forma indelével o rumo da música moderna: Richard Evans, Charles Stepney e Marshall Chess.
Richard Evans foi o primeiro produtor da Chess a fundir elementos do rock e do jazz, expresso nos inúmeros discos que produziu de músicos como Richard 'Groove' Holmes, Jack McDuff, Ramsey Lewis ou Dorothy Ashby. Evans acrescentou uma nova dimensão ao jazz que se fazia na altura, utilizando arranjos de metais, cordas (soulful strings) e coros e uma secção ritmica que tocava com o fervor dos blues, usando novas técnicas de gravação e instrumentos como o theremin (por exemplo, no inicio de 'Soul Vibrations' de Ashby, incluído neste disco), acresentando uma dimensão espiritual e mística que influenciou artistas como Alice Coltrane.
Charles Stepney era um compositor de orquestras pouco conhecido, com um particular interesse pelo avant-garde. Charles apareceu na Chess como teclista dos Soulful Strings. Daí a produzir o primeiro disco dos Rotary Connection foi um pequeno passo. Encorajado por Marshall Chess (filho de Leonard), utilizou novas técnicas de gravação, manipulação de fitas e novos instrumentos electrónicos, criando uma sonoridade rica e cativante. 'Memory Band' dos Rotary Connection, é dos temas mais interessante contidos neste disco e é uma música notável com a inclusão de cítaras eléctricas, vozes de crianças, uma orquestração luxuriante e bizarra e a voz high pitched de Minnie Riperton. Stepney fez, uns anos mais tarde, parte dos essenciais Earth, Wind & Fire.
Por fim, Marshall Chess. Como já foi dito, Marshall é filho de Leonard Chess e desde sempre esteve habituado a conviver com os artistas da editora, que apareciam em casa dos seus pais após as gravações. No final da década de sessenta, influenciado pelas conferências de Timothy Leary e pela música de Bob Dylan e de vários grupos underground como os Jefferson Airplane ou os Buffalo Springfield que ouvia no mítico Electric Circus, pretendeu explorar musicalmente estas ideias como produtor. Surgiu assim uma nova subsidiária da Chess - a Cadet Concept - mais especializada no rock psicadélico.
Uma história curiosa: 'Electric Mud' de Muddy Waters misturava um funk raw aos blues originais - blues que, nesta altura, eram vistos pela juventude negra como fora de moda e representativos de um passado que era preferível esquecer e que foram alguns anos antes, reinventados num folk blues mais acústico, aparecendo em festivais conceituados como o Newport Folk - e foi mal acolhido pelos críticos de blues mais ortodoxos da altura. Mais tarde, Chuck D, dos Public Enemy, considerou 'Electric Mud' o melhor disco de blues que jamais ouviu e o álbum foi regravado por Marshall em 2003, com os músicos originais a gravar ao lado de rappers como o próprio Chuck D e Common.
Leonard Chess morreu em 1969. Antes, nesse mesmo ano, Leo e Phil haviam vendido a companhia à GRT, com o objectivo de realizarem dinheiro para entrar no competitivo mercado televisivo. Mas, com a morte de Leonard, morreu também o coração e a alma da editora original. A GRT (uma empresa que manufacturava discos e meios de gravação e que pretendia fomentar o seu negócio comprando diversas companhias discográficas) ainda nomeou Marshall como presidente, mas a nova administração não tinha a sensibilidade, a dedicação e o talento dos irmãos Chess e rapidamente a editora entrou em declínio. Em 1975, a GRT fechou e vendeu a Chess a Joe e Sylvie Robinson, donos da All Platinum Records e da Sugarhill Records, que, impulsionada pelos talentos dos Sugarhill Gang e de Grandmaster Flash, se tornou uma das mais bem sucedidas editoras de rap da altura. Contudo os Robinsons foram incapazes de recuperar a label, e venderam-na à MCA, mais tarde adquirida pela Universal, major que nesta altura detem os direitos de exploração do imenso e rico catálogo da Chess.
Este disco conta a história da Chess na década de 60 - a sua década mais produtiva, em que chegavam a ser editados cerca de 50 álbuns e mais de 100 singles por ano, distribuídos pelas subsidiárias Argo (mais ligada ao jazz), Checker, Cadet e Cadet Concept. Obviamente, não substituirá o prazer de aquirir os singles e os lp's originais, mas é um resumo essencial e um primeiro contacto imprescindível com uma das editora mais importantes e mais ignoradas da história da música. Ficamos então à espera de novos volumes e desenvolvimentos nesta história e que se descubra o legado de outras editoras essenciais na definição do som de Chicago, como a Vee-Jay Records, a King Records, a Okeh (uma subsidiária da Columbia, cujo a & r era Carl Davis, um dos mais importantes produtores da altura) ou a Curton Records, de Curtis Mayfield.

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Marshall Chess Interview.
Chess Records.